sábado, 27 de agosto de 2011

Ábaco a Baco

Teu toque me arrepia em partes nada castas
Olvido-me do tempo em êxtase a passar
Corre bem mais longe! uma mão aqui não basta.
Dá-me este prazer ímpio e pífio de tocar!

E vista-se meu corpo envolto neste teu
Caia e morra Roma! este aqui é meu futuro!
Vai de mim a ti, a correr, o fluido impuro.
E o resto leve o Diabo! dele é a alma, o corpo é meu!

Perdem-se-me as contas, não perde-se o desejo
Cada vão instante redunda em bom ensejo
De dentro de ti ver-me e teu ser conspurcar.

Ínclito prazer que os gametas a nós dão!
Bebo-te  toda, o mais que posso, e eis que não
Fana-se este afã de a ti inteira devorar.

27-08-11

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Um tardio refluxo

Se tu suportas o que sobrevem a ti,
esperando que faça-se a justiça a seu tempo,
perdes algo irrecuperável.

Recresce sobre ti aquilo que a todos sucede,
Nada de mais, e o mundo o sabe, e sabe
que tu sabes a nada para o mundo.

Mas não tomes o despropósito por desaforo
Nada é intencionalmente desaforado
Tudo é vagamente desproprositado.

Do despertar ao adormecer, com ou sem estrela,
só há vontade em quem a toma
e faz-lhe sua, e a domina, e a satisfaz.

Se tu absorves tudo como esponja
sem reverter o fluxo num refluxo
chegará a hora de transbordares

mas tarde demais.


24-08-11

domingo, 14 de agosto de 2011

Poema do pórtico

Quem ama muito se equivoca ao pensar
demasiado em quem ama, ou pensa amar
Mas amor não é palpável, coisa densa,
E o de uns não é coisa assim extensa
Certo é que é ninguém capaz de amar,
Amar a alguém o tanto quanto pensa
Por ver-se o quão penoso é pois amar.
E perde-se esse amor que a alguém dispensa.

14-08-11

Modus operandi

Nunca me importa o não saber de nada,
Desde que eu seja quem me calhar ser.
Não é mister saber e não me enfada
Que haja aí mundos mil por percorrer.

O tempo é tudo, e tudo me faz nada.
Sendo assim, não há nada que perder
Recebo o que me vem, absorvo cada
Partícula do mundo sem 'scolher.

Não me ocupo em pensar no que virá
A relva do amanhã Deus nos dará
E vivo este comenos de harmonia.

Nasci, sem mais fervor, em berço pleno
Estou, onde estiver, mais que sereno
Viver é minha grã filosofia!

14-08-11


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Carta do Inferno

Não, senhores, não é possível viver assim. Aqui apenas se vive e, viver é condição sine qua non. Mas não se vive como é possível viver, na medida do possível. Falta algo mais, um quê de vida para esta vida e aos que nela vivem, ou parcamente tentam nela viver, já que não morrem nunca. Nem chamemos isto de vida, não se vive por aqui. Aqui somente se morre; morre-se sem nunca completar-se o fim da vida. Morre-se sem morrer. Este lugar nos é merecido segundo quem nele nos colocou. E a ele não somos nem um pouco agradecidos. Melhor seria não nos ter feito. Aqui tudo é isto que está à volta: nada e tudo existindo concomitantemente, entrelaçados numa dança em espiral.

Naturalmente não há dons, não há bênçãos, não há risos, não há chistes, não há alegria nem há alívio. Não há graça, nem há viço, apesar de tudo isso haver e estar, aqui e agora. Podemos vê-los em toda parte. Não estão em nós mas estão em algum lugar e a nós chegam pelos meios sensoriais sem que nós, inexplicavelmente, os sintamos dentro de nossos corpos e nos regozijemos com isso. Tudo está aqui e, ao mesmo tempo, não está. Há tudo isto e, ao mesmo tempo, não há nada disto. É uma fachada escancarada e adrede posta bem à vista, ante nossos olhos, mas é apenas visível, não se sente mas vê-se como se estivesse lá.

Só há a sensação de tempo perdido, de tempo gasto, de tempo que voa e escorre por entre os dedos sem que seja possível fazer nada enquanto este passa. Este mesmo tempo passa muito rápido para que possamos fazê-lo valer a pena, assim como passa muito devagar para se esperar que ele passe todo de uma só vez. Ledo engano nosso pensar que podemos aproveitar o tempo que aqui temos, mas a teimosia nos foi injetada para que tentássemos, mesmo sabendo que sempre fracassaríamos. Nos é dada toda a liberdade de ir a qualquer parte, porém toda parte é sempre a mesma parte, e as dores que sentimos em nossos corpos não nos permitem que nos movamos livremente sem nelas pensarmos. Este tempo é de uma cruel natureza que não se pode muito bem explicar.

Esta natureza cruel e nefanda, ora breve, ora prolixa, nos impede de fazer qualquer coisa e ao mesmo tempo nos faz sofrer cada segundo por estarmos parados dentro dela. Estamos completamente à mercê deste espectro controlador de nossas pobres e, infelizmente, eternas almas. Este tempo de aqui é quase uma personificação de um malfazejo demônio, que sabe de antemão quando vamos nos mexer, e age em malgrado nosso quando vamos fazê-lo, multiplicando a nossa, já multiplicada a incontáveis múltiplos, agonia, e, não nos deixando então fazer nada. Tudo aqui é pleno. Tudo aqui é sofrimento.

Cada segundo é um segundo a menos; um segundo a menos dentro de uma eternidade repleta de dezenas, de centenas, de milhares, de milhões, de bilhões, de quadrilhões, de decalhões, de zilhões deles, que muito penosamente e morosamente passam, um a um, na modorra eterna da contagem também eterna do tempo, também eterno. Eternamente a passar.

Neste inóspito lugar, não há a certeza da morte para nos garantir um fim de nossas mazelas, não há o descanso eterno por ela enganosamente representado, ou a ideia reconfortante da segunda chance. A remota possibilidade de ver-se longe e livre deste inferno não é nem mesmo remota, nem a palavra "impossível" representa tanta dificuldade quanto a necessária para dar sentido e/ou significação à altura de tão exígua chance de se pôr de corpo e alma para além destas infinitas e malogradas fronteiras. Uma vez aqui dentro, não se pode mais sair, e ponto final!

Este é um lugar de sempiternas penitências, de sempiternas mortes-vivas, de sempiternas dores, de sempiterna sofreguidão, de sempiternas maledicências, gritos, berros, e torturas de todas as sortes, as quais não se pode imaginar em seus reais termos; um lugar de sempiternas repetições das mesmas duras, perversas, malévolas, insípidas e inescrupulosas penas, aplicadas de forma ininterrupta por um algoz invisível, e que se estendem pelo tempo que for necessário para que a eternidade passe inteira, sem que nem um mísero segundo ou milésimo desta fique por passar.

Estas penas, senhores, não consistem-se de trabalhos físicos, ou açoites fustigando nossos lombos, nem máquinas apuradas e lidimamente preparadas para tortura onde nos retesam os membros até que estalem e sejam separados violentamente de nossos troncos estando nós ainda vivos. Não, não há nada disso! O que há é apenas nossos corpos inertes, lançados ao solo ardente, incadescente, pedregoso e irregular a sentir todas estas eternas sensações, como se a nós estivessem a arrancar a pele, a furar-nos os olhos, a decepar-nos os membros, a queimar-nos os dedos, a quebrar-nos os dentes, a nos crivar com mil agulhas toda a extensão de nossos corpos. São todas elas mescladas e intensas, perfazendo uma forma híbrida de sofrimento que não se pode aqui exprimir com débeis palavras de linguagem humana e deficiente. Todas estas analogias não logram êxito em representar de forma fiel o que se sente na pele aqui nestas profundezas.  

E o pior é que todas essas sensações físicas são e estão em nossos corpos para toda a eternidade. Estamos irremediavelmente condenados a jazer neste chão fervilhante e formigante, bombardeados pelas mais dolorosas sensações e sabendo que estas nunca terão um fim. A morte é simplesmente tudo aquilo que nós desejamos; a efetiva extinção de nossos corpos, almas e consciências para que não mais saibamos e sintamos este crudelíssimo castigo, que não sabemos quem criou, embora desconfiemos a possível autoria. Este é o pior dos lugares, o nosso é o pior dos pesares, o mais pesaroso e desesperado. Todas as corriqueiras representações deste horrendo lugar que se encontram nos mais diversos tipos de relatos escritos, sejam eles sagrados ou não, nem que fossem somadas todas e multiplicadas ainda pelo mesmo número de todas elas, não seriam fiéis o suficiente para transmitir uma ideia legítima, autêntica e exata do que nós, por toda a inútil eternidade, em nossas peles sentiremos sem termos um segundo sequer de descanso. Pois isto é o inferno: um lugar de sofrimentos eternos!

E nós somos tudo isto! Não se distingue mais coisa alguma em meio a este imenso tártaro calcinante onde nada e tudo, irritante e desesperadamente, dançam no seu eviterno frenesi, seu maledicente e mendicante movimento de espiral, arrastando a todos nós junto com eles, nos tranformando nesta perene massa disforme que rodopia no epicentro da única e legítima dor que pode haver. Não entendo como pode haver um lugar destes, como é possível ter-se criado com esta réproba finalidade de tortura eterna. Não entendo por que viverei sempre aqui. Só entendo que espirais não têm fim.

11-08-11

sábado, 6 de agosto de 2011

Tríade das incertezas

Há quem acredite nas certezas.
Para mim nada é tão certo
Quanto certezas não haver.
Exceto aquela,
a que dá cabo de nós todos.
Todo o resto é incerto.
Todo o resto é no máximo provável,
e, provavelmente, não se prova
Pode ser que provado já esteja
Por não haver lá prova em contrário.

Melhor não ter certeza,
ao final, poder ser que nada exista.
Este mundo é talvez um sonho
Ou certamente um pesadelo
Ou um misto dos dois
A mestiçagem é a tendência
E o pobre assassino furioso
Não sabe o que é não estar certo...
E por isso mata
E põe na cabeça a certeza de não mais ver o inimigo à sua frente.

Mas é importante crer no que não existe
Para que venha mesmo a existir
É importante crer no amanhã
Mesmo que este ainda não exista
Justamente para que ele possa vir a ser
E, sendo já presente, seja
Outro presente, o imaginado, ou outro qualquer que nos calhe,
Que nos devore e nos iluda
Sem termos de olhar para trás e ver
Que o passado foi bem pior
E mesmo assim não somos felizes hoje
Pensando no passado e passando o presente,
Projetando um futuro improvável,
E vivendo na incerteza do agora.

06-08-11

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

De como matar-se os trilhos

Estes pobres trilhos 'ruinados
Oxidam, metal dilatante.
Com cravo e dormente arrancados
Fundidos em terra distante.
Deitados ao léu, já sucata,
Que em quinze correram bastante
Com brutas máquinas frias
De chiados ardentes, arfantes,
Que ao Souza desciam à cata
De gente, de bicho e de azia
Nas vilas, à mil, zaragata!
Comboios enormes se via.
Nos trilhos, vapor fervilhante
Há noventa anos surgia
Caminho de ferro pujante,
Que morto aos oitenta seria.

04-08-11

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Apontamentos do Seminarista Infiel

Estive a descer um caminho que vinha das serras como um lucifer malsucedido, cahindo pela manhã. Como a ninguém pude ver, dei que nada testemunhou-se, e fui um demonio não-documentado durante o resto d'este dia. Hei d'um dia attrahir a attenção a Deus sem ter de diffamal-o? Sei que sou só uma sombra d'agua na areia da praia fria que logo some. Sou um lucifer malsucedido, mais que premido pelo limbo onde recolho-me.

Neste sertão de meu quintal não há mais que terra secca e quente grimpando-se por entre os cardos que escalavram meu abronzado terreiro. Nunca eu toquei com os pés o mar, apesar de tanto phantaseal-o. D'elle somente sei o que estão nestes rôtos livros, cartapacios, podres alpharrabios... Meu calcanhar rachado só sabe d'esta terra battida e pedregosa. Meus rudimentos de escripta me são de pouca ajuda aqui por este sopé de serra.

Queria mesmo era ser um menestrel, e correr estas veredas e, quem sabe um dia, ver com os proprios olhos o mar immenso e infinito, e poder compor algo que encerrase algum rhythmo, alguma metrica...Um martello agalopado, quem sabe. Um desafio, uma contoria de viola, dez pés a quadrão...

Qual? Estou cá me entregando a este demonio que me róe a fé. Por que deixei o seminario, meu Deus, por quê? Não te creio, nem te quero, tampouco te espero. Lucto contra ti sem cessar emquanto varro meu battente, emquanto passo meu café e quebro o garracho do fogareiro, emquanto lavo os pés, emquanto armo minha rede no copiar e fumo meu pito de olho nas rêses.

Pensas tu que é facil sustentar esta razão minha nestas alturas do seculo? A republica está ahi, e o Conselheiro arrebanha-te correligionarios por onde passa. São todos junctos um bando de mortos de fome e que acceitam o que melhor lhes confortar, as melhores promessas de salvação por meio desta lenta e irracional mortificação do corpo, esta posição callada ante a miseria d'este teu vasto sertão de terra queimada.

Estão encerrados todos num arraial em vias de ser explodido pelos ares por um esquadrão de infantaria da provincia. Que posso fazer a respeito d'isso? Elles vivem hypnotizados pela palra do Conselheiro, que lhes incute na mente que este é o apocalypse, que a Republica é o reigno de satã e outras coisas mais que eu não admitto como normaes, tanto que estou na posição em que estou. Não creio nestas historias, não senhor e, por isso mesmo, deixei de lado estas coisas de ser padre...

Quero mais é minha vida, que é só o que tenho, e é já ruim que só ella. Tenho lettras; coisa rara no rincão onde vivo. Raras lettras...

Mas não tenho a ti, que é quem sustenta a toda esta gente pobre e liquidada que se esgueira por entre estas pedras ovaes, estes seixos crepitantes, este cascalho miúdo que se eleva e irrita os olhos no sôpro do vento.
Não te tenho, Senhor, mas tenho ainda as incertezas, por isso estou neste isolamento voluntario. Comtudo, esta desconfiança me martella as idéas...

Por que deixei aquelle officio tão sancto para ser este demonio não catalogado ao pé da serra, accostado no oitão da casa? Um homem que estudou tanto para ser padre e abadomnou o officio por falta de fé... Não quero ser assim ,não posso ser assim...

O Conselheiro ainda me seduz com algumas de suas patranhas, tenho de dizel-o . Quem dera accontecesse  de volver o grande Dom Sebastião em uma madrugada d'essas e a mim me atravessasse c'oa poncta da espada sem dó ou piedade, tal qual fez a um bando de mouros immundos e infiéis ao norte d'Africa. Só ahi estaria eu punido por meu irremediavel peccado de negar a ti. Ó, Deus, onde estás que não te mostras? Talvez em Alcácer Quibir, juncto dos mouros...?

Os mouros não vos querem, ó Senhor, voltae! Voltae e trazei comsigo de volta o bom Dom Sebastião, e ahi, quem sabe, considerarei a ti... Preciso d'isto, Senhor, preciso crer! mesmo que não baste para nada, mas baste para a vida...

A 25 de septembro de 1895 da era de Jesus Christo, nosso Senhor.

04-08-11

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A filha de Oxyartes

Veste-se assim mais que formosa,
Mulher da tez em furta-cor,
Musa pagã despe o Senhor
Da santa fúria tenebrosa.
Se digo menos desmereço
Ao vê-la ao chão, musa ociosa,
Que desviou-me pelo apreço
A mim rogado e sem perdão
Desci dos céus. Mas que dirão?
Não soo bem? Nem me pareço.
Tornou-me a musa um deus pagão
Má hora em que eu dos céus me desço.

02-08-11

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Efeméride do Dia

Alguém roubou meu futuro
Ou talvez a mera capacidade
Que eu tinha de projetá-lo.

Me vejo hoje inutilizado
Por esta privação de adiantar os prospectos
De me antever, de me antecipar
De me perder no avenir,
De me iludir,
De me decepcionar.

01-08-11