quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O lagarto do Parque Güell

Sonhei uma vez estar no Parque Güell admirando suas colunas, seus azulejos, suas torres, maravilhado com toda aquela belíssima aura de modernismo desmedido de Gaudí, e, descendo um vão de escada de corrimão sem balaústres, me vi, inexplicavemente, numa estada descendo o Araripe onde alguns carros, todos eles Ford T, subiam o declive em marcha ré com os motores desligados ou com câmbio em ponto morto. Não lhes dei atenção, minha mente desembocava todo o fluxo das ideias no lagarto do Güell, o lindo e imponente lagarto do Güell. Procurei debalde esse lagarto - sempre tão recorrente nas imagens do parque - por todos os lados, como pude, e somente depois de alguns minutos dei-me conta de que não estava mais em Barcelona, e sim no meio do Araripe, que não obstante ser um recôndito de mata atântica, me figurava no sonho como o mais desidratado e escaldante sertão, um puro andurrial. Olhando para o ocidente vi uns trilhos fazendo a curva na descida da serra e resolvi segui-los, uma vez que havia me desvencilhado do caminho que traçava, e vi que não poderia mais tornar ao lugar onde estava anteriormente. Neste dia ensolarado ventava muito naquele descampado ressequido e, como é de praxe nos sonhos, esqueci completamente do que estava a procurar e apenas segui os trilhos. Pouco tempo descendo a escosta, vi uma grande pedra onde estava escrito algo como "JO SÓC UN DRAC, NO UN LANGARDAIX" e, sobre ela vi, com grande surpresa, que deitava, imponente, o lagarto do Güell. Fitei-o bem de perto tentando gravá-lo na memória em seus ínfimos detalhes, pois senti que não permaneceria ali, no meio do ábdito sertão, por muito tempo.

Não podia imaginar como ele havia se teletransportado àquelas paragens desde Barcelona, nem mesmo como eu havia feito a mesmíssima coisa apenas descendo uma escada. Me concentrei nele finalmente. Os Ts haviam parado de passar ao longe na estrada, não vi  mais os trilhos que segui até chegar à pedra que deles se avizinhava e onde pousava o lagarto. Estava agora no meio do mundo, onde o Sol não dava sinais de tramontar nunca, sozinho com a famigerada criatura. Não me lembrei em nenhum momento de Gaudí, e nem o considerei como criador daquele ser extraordinário. Certamente ele sempre existira e, quanto mais eu o mirava, mais certo me tinha desta constatação.

Muita água jorrava de sua boca e evaporava antes de tocar o solo. Eu não consegui atinar de onde vinha aquela água, ainda mais estando onde estávamos. Dos poucos lagartos que havia visto, ele era o maior e o mais belo de todos, sobranceiro àquela pedra lavrada e fervilhante, tão imponente e calcário; era calcário sobre calcário, mas não sendo ao mesmo tempo a mesma coisa. O lagarto era indivíduo, senhor de si, não era pura pedra ou pedra bruta, era ser de pedra sem ser pedra. Brilhava ao sol forte e parecia cada vez mais brilhante à medida que o esquadrinhava mais de perto. Não, Gaudí nada tinha a ver com a criação daquele vultoso animal; Gaudí, mais provavelmente, havia sido criado por sua suposta criação. 

Parecia que estava a ver o próprio Deus, o Deus lagarto. Não consegui, por mais que tentasse, tirar meus olhos dele, quanto mais afastar-me de sua etérea presença. Vi que enquanto estivesse ali, não haveria noite, o Sol estava lá com o fim único de iluminá-lo. Ele se alimenteva de Sol, de luz e, agora, de minha embasbacada admiração pela sua acrônica e reptílica beleza. Decerto logo me mataria e me devoraria, como fez com o próprio Gaudí, que tentou apoderar-se dele, sem êxito.

Confesso que achei-o muitíssimo mais majestoso ali, encimando a rocha, do que na própria fonte em Barcelona, no centro das escadas, onde era senhor do parque. O sertão lhe caía muito melhor como cenário, mais belo que qualquer retábulo barroco. Me parecia que sempre estivera ali a contemplar o infinito céu, completamente imóvel e indiferente a qualquer fenômeno, mergulhado em seu transe eternal, onde se elevava no meio da caatinga. Um ponto que marcava a beleza do seco e inóspito sertão e o transformava em distorção tempo-espaço, uma cúpula invisível que delimitava um deífico sítio de terra brônzea e escaldante. Parece que nunca estivera em outra parte que não fosse o lombo abaulado daquela pedra.

Senti mil ganas de tocá-lo e sentir seu frio e rutilante corpo. De olhos fixos a mirar sua face, eu balbuciava, de forma irritante e em voz baixa e rouca, ininterruptamente, a frase "és o deus lagarto". Não pensava em mais nada a não ser em tocar sua face ou sua cabeça. Não conseguia me alhear dessa vontade tremenda, absolutamente nada mais me passava pela mente senão isso de tocá-lo. Estava completamente dominado por tal desejo e não pude fazer nada além de chegar-me gradativamente para perto dele. Ele, por sua vez, não se movia de forma alguma, e brilhava cada vez mais, mais que o prório Sol, mais que qualquer outra luz que apareça em sonhos sem deixar cego quem a vê. O sertão inteiro havia sumido completamente àquelas alturas. À nossa volta, nada a não ser o branco de sua luz que recobriu todo o universo que o olho pode ter ao alcance. Estava eu cada vez mais perto dele e cada vez mais me sentia numa eviterna paz ao estar próximo de tê-lo de encontro a meus dedos. Cada vez que me aproximava dele, de sua cabeça, com a mão estendida e espalmada para senti-lo e tateá-lo, mais rápido repetia as já ditas palavras, até que, quando finalmente consegui ficar à distância de um palmo de seu corpo, e ainda repetindo as palavras sem cessar, arrostando-me ele, sem mover a boca nem outra parte do corpo, disse em estentórea voz: "Não sou Lagarto, sou Dragão!" e desfez-se em luz antes que eu pudesse realizar minha única e mais avassaladora vontade.

08-09-11

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.