Lugar estreito onde somente eu estou. Leio um dístico de letra preta e serifada que enteso diante e à altura de meus olhos: "no más logro comprender la jerarquía de los ángeles", diz. São de Velásquez de Argamansilla, se não me engano, e ainda não enganando-me, disse a ela alguma vez que gostava muito desse poeta, o que não era de todo verdade. No verso, com a letra de seu próprio punho, ela havia acrescentado: "...porque estamos, en nuestro amor, más allá de los propios serafines, estamos más adentro en el propio Dios." Ainda guardo este fragmento de poema e nem sei por quê. Faço uma curta caminhada pela betesga mais imunda mas não trago de lá nada comigo a não ser tudo o que levei. Está sempre do mesmo jeito, tanto embaixo, quanto em cima. A parte de cima, esta é absolutamente imutável desde o imprecisável início. Fui jogar fora este papel, - recorte dalgum livro de poesia no verso do qual ela me adicionou aquelas palavras - e em casa me descubro com ele dentro do bolso da camisa. Então, já de volta, pinto os olhos dela com um bastão de cores múltiplas e fugazes que comprei da última vez que estive fora daqui e junto de alguém que era ela, e lembro que ela era como não é hoje. Por serem quase imaginários, seus distantes olhos somem à medida que tento esboçá-los com estas cores baças. Desisto, pois, de tentar bosquejar o que não detenho mais na mente. Os anjos, aliás, são inúteis para mim que não creio neles. E seu poema sobre hierarquia angelical, não significava mais nada quando fui atirá-lo fora. Devo ter hesitado no momento do coup-de-grâce. Fiquei com ele de lembrança.
Fico recostado num recanto de meia-luz contando minutos úteis enquanto espero a grande retaliação dos altos exércitos. Deram de lá uma ordem que a mim chegou pela boca de muitos e que não tive a coragem ou a vontade de acatar. Foda-se. Faço as minhas vezes de soldado ornamental estando completamente só, recolhido em bom lugar mais que recôndito. Querem muitos que seja um bunker mas não entendo de guerra, faço-a instintivamente sem saber se a venço. Não é fortaleza de qualquer espécie, não é demasiado poligonal, é concreto armado, e armado sendo, me aconchava e me retira da vista do mundo, no entanto, não é impassível de penetração de elementos externos. Tem coisas essenciais aí dentro, coisas primordialmente essenciais. Até eu estou aí. Convenci-me disso há pouco tempo. Ela não está. Não está mais.
Ela, desde então e, muitas vezes, fervorosamente, reza para que o céu se exploda e, violentamente, arraste tudo consigo num vórtex de ventos multidirecionais. Ela não aguenta. Com os anjos à volta, já me escreveu muitíssimas palavras sem, no entanto, ter a coragem de me as mostrar. Ela não sabe ao certo se ainda tem o que quer, ou se o conseguirá denovo se não mais o tem, mas tenta de uma forma ou de outra consegui-lo, não fazendo nada para isso. Desde a última vez que se sentiu como o serafim próximo da plenitude, sonha avidamente reconquistar um momento de igual euforia. Eu maquino uma maneira de chegar onde deixei minhas pernas. Não conto com nada que possa vir. Chamar a atenção não funciona por agora, e ela se desespera todos os dias e não deixa ela mesma saber. Ela tem medo das hordas que estão a caminho daqui com promessas de um grande expurgo. É realmente muito intimidador e põe medo nas gentes que se amontoam nos pontos de irradiação. Será uma das coisas mais maravilhosas e ao mesmo tempo mais amedrontadoras que se passarão nestes próximos anos. Eu vejo nos noticiários que pode ser o acontecimento do século, e, secularmente, isso me sai pela outra orelha seguido de alguns apodos que me vêm na ponta da língua.
Ela quer, às vezes, que mais alguém compartilhe de bons momentos com ela. Mas sabes como essas coisas estão hoje em dia, não é? Os soldados hodiernos são assaz desconfiados e preferem uma vida reclusa nos seus permanentes abrigos de hibernação onde fazem sua vigília automática e declamam suas odes para a polilha suspensa. Ironicamente, são os que mais chamam atenção e mais despertam afeições mal dirigidas. Ela, naturalmente, não está afeita a esta solidão pela qual passa, mas faz troça desse estado enquanto espera que se altere. E conta os grãos de poeira, bate a cabeça nos trevesseiros, corre as mãos ligeiras pelas costas do gato lançando olhares vazios para o teto, canta refrões soltos de músicas irritantes que ela sabe que nunca lhe sairão da cabeça, escreve versos anônimos atrás da capa do caderno, assiste filmes tristes, ri de qualquer coisa engraçada que alguém deixa escapar na conveniência dos momentos oportunos, dedica seu tempo a ícones distantes e se prepara para o acontecimento maior que pode haver, ainda não marcado nem especificado, mas certo para um dia solto e qualquer do calendário; algo que ela quer e precisa, algo que só está em alguém mais, e não nela própria, bem longe dos anjos assexuados e das luzes indecifráveis das alturas. Ela precisa, para sentir-se próxima dos céus como os anjos de seu poema, de algo sujo, terreno, recheado de apostasia e desaforo para com as ordens que vêm dos altos exércitos. E todos os dias oscila entre demônios e anjos, e sofre calada, e manda aos diabos a sua hieraquia de tédios tristimaníacos.
Ela precisa de algo que lhe anime; ela precisa de motivos para ser verdadeiramente aquela que se apresenta diante dos outros. Ela sente afinidade enorme pela potestade e elevação dos serafins colados a Deus, ao mesmo tempo que se sente atraída pelo meu desleixo de soldado infiel, militante procrastinador e detrator dos grados angelicais. Ela tem anseios não revelados, ela tem vontades impossíveis, desejos refreados por um QUEM ou um O QUÊ que niguém conhece, nem ela própria. Ela diz que precisa de alguma coisa a qual tudo e todos lhe negam; ela diz se arrepender de ter dito ou não ter dito aquilo; ela diz que quer saber o porquê mas sabe que não suporta quando alguém lho diz; ela diz que quer algo, sem saber o que exatamente quer; ela diz que não mais aguenta esta solidão lá dentro; ela pensa mil coisas quando lhe dizem qualquer coisa sem pensar; ela pensa que tudo a ela se refere; ela urge por alguém que seja o certo, mesmo enxergando-o e tendo-o como errado; ela diz que não quer mais ser assim; ela diz, mas no fundo não o sustenta; ela diz mil coisas mas não se decide. Ela disse que queria conversar. Eu disse 'Não'.
14-12-11
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.