domingo, 31 de julho de 2011

Noutras partes

Noutras partes está o desespero:
E vem silencioso como gato.
-Quem te disse que isto é teu?
Tudo é do mundo, tudo é de ninguém!
Não sou teu, e tu não és gato!
Só desabo quando estou só...
Quando estou só, então eu desabo.

Noutras partes está o riso:
Vem tímido como o misantropo,
Sai abafado e pouco espontâneo
Pela miríade de desditas insossas
Não rio assim, só os loucos riem de fato
Só rio quando não estou bem,
Quando rio não estou remediado.

Noutras partes está o medo:
Chega de chofre, qual o raio que parte em dois o carvalho,
Destrói, aniquila e degenera,
Impede todo o tipo de liberdade.
Não tenho medo de ser assim,
Só tenho medo de sentir medo,
Quando estou comigo mesmo é que estou amedrontado.

Noutras partes está a dor:
Esta está, e sempre esteve
É como o coração que bate,
E o câncer que dorme, tão tenro...
Não me dói tanto, só me dói quando penso
Só a dor abre meus olhos
Quando me dói, é por ter eu pensado.

Noutra parte está a mentira...
Melhor dizendo, em toda parte.
É como arma que falha, mas funciona de quando em quando
Minto descaradamente para mim mesmo
E faço com que eu mesmo acredite que sou
Tão interessante quanto estou sendo agora, mesmo não o sendo
Quando minto estou quase esgotado.

Noutras partes está o amor
Está...?

31-07-11

Agora

Estou irremediavelmente feliz!
Mas temo ser só agora.
Nunca dura por muito tempo, sabes?
Nunca durou, tenho de o dizer.
Problema é que não sei dar por isso
Quando vejo, já passou
Mas agora estou feliz,
Feliz e nem sei o porquê...
Que fique então gravado este momento irracional
Para a posteridade de meus lamentos diários.
E amanhã, ao anoitecer, quando quiser me matar,
Lembrarei de hoje e vou sorrir c'o canto da boca
Mas o agora é que me importa!
Vivo-o como vivo. Agora!
Feliz como nunca antes estive!
Irremediavelmente feliz!

31-07-11

Adeus, Ricardo Reis!

Quem te disse que assim é o mundo?
O mundo não se diz a ninguém
Nós outros é que dizemos o mundo
Por nós é que ele está dito
Pois só a nós interessa
Dizer o que aí já está
Dizer a nós mesmos o que dizemos ao mundo
Mas o mundo é isso: pérolas e porcos.
Digam-no os deuses, que a nós nos vigiam
E riem de nós por querer dizer muito
Do mundo desdito que nós já dizemos
Sem dizer que não basta somente dizê-lo
Nos falta fazê-lo.
Beija-me, Lídia...

31-07-11

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Do filósofo da má-fé

Como pode um homem maduro e de barbas se dar o trabalho de fazer uma coisa dessas comigo? Sempre pensei que o mais assisado a fazer fosse não se queixar tanto e deixar que o mal acontecesse por si só, como é próprio na ordem natural das coisas. Mas me vem este velho estrábico e me fala de má-fé e me põe nas costas o peso de toda a desgraça que tenho e que não tenho, que sinto e que virei a sentir, e, como se não bastasse, mui comedidamente lhe agradeço, porém já dando-lhe logo depois os mil louvores e âmens por aumentar ainda mais a angústia e me envergar ainda mais minha coluna, já tão enviesada. 

Não merece perdão este homem por ter, até os tutanos, o altivo pedantismo de ter a mim arrancado violentamente do limbo, onde eu era uma pobre e inocente vítima de olhos brilhantes, e me lançar desprotegido neste tártarto de culposidade, de errores e de faltas gravíssimas, me esfregando nas fuças que tudo isto tem como único causador e responsável ninguém menos que eu mesmo.
     
Por fim a este homem, depois de ter incutido em minha mente que sou o vilão da  história, que tenho toda a culpa no cartório, que sou eu e não outro o responsável pelo sim e pelo não do status quo, como já hei dito, agradeço, nem mesmo sei por que o faço, mas o agradeço mesmo assim, e com agradecimentos mui sinceros e até mesmo copiosos, pois, ao mesmo tempo que me fez ver com os próprios olhos que vivo no inferno desde que fui engendrado, igualmente me fez ver que sou, ao mesmo tempo, um homem livre, e a ser livre estou condenado enquanto conservar-me com vida. Ser livre: este é o preço que estou pagando por descobrir a verdade deste inferno. Estou repleto é de má-fé!

29-07-11

Orfeu e Eurídice

Aos mortos desce Orfeu,
A lira nada vale,
Calou-se o canto seu,
Que a Hades então fale.
E os pássaros e os regos,
Lamentam que ele pare,
C'os versos que lhos deu,
E morto agora cale.
Ligados pelo apego,
Pranteiam pois morreu,
Eurídice e seu par,
Mas tornam a se amar,
Já mortos, ela e Orfeu.

29-10-11

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Eu era um Meursault juvenil

Te decepcionei, não foi?
Sempre faço isso, deverias saber.
Se decepcionei a ti, peço desculpas...
(não sei se são sinceras, provavelmente não são)
Faço somente o que está ao meu alcance
mas faço-o porcamente...
Como tudo o que faço, pois
não ponho amor nas coisas que faço
nem nas pessoas - que se fazem sem que eu as faça.
Mas quando eu tiver algum amor,
quem sabe...

Me disseram que sou um Meursault juvenil
Estou quase acreditando nesta história
Tu deverias fazer o mesmo.

22-07-11

quinta-feira, 21 de julho de 2011

à-propos

Pergunta-me o que é viver e dir-te-ei que é não saber
Não é a vida certa, como a morte, nem se sabe se é tão viva
E sou tão novo pra sabê-la, sou tão homem pra vivê-la
Nunca desci tão baixo, nunca dormi tão forte, nunca fui sempre, sempre fui nunca...
Mas sempre digo nunca, e nunca sou o que digo ser, mas não sei se é assim sempre.
Será mesmo isso?
Não sei, só sei que vivo,
E viver é não saber.

21-07-11

terça-feira, 19 de julho de 2011

Objecto quase

Muito bem! cala-te que ouvir-te eu não mais quero
Demais m'irrita este teu ar de quero mais
Mui me desgasta, este colóquio e me desfaz...
O meu desdém, e o teu também, é o mais qu'espero
(mas tanto faz)

Quero alhear-me do que é teu, do mundo austero
descer do altar ao conjurar-me sem ter fé
Desejo um mundo onde só eu sozinho impero
Ser mais por mim que por alguém que meu nem é
(e nem o quero)

Mas não me adianto, não me lanço no projecto
e circunspecto estou deixando agora o altar
Bem mais que um homem, sou eu bem mais, quase objecto
E me persigno - é meu prazer me persignar.
(e com mais plectro)

Agora danem-se, meus bons samaritanos!
A vós vos dou vosso Sansão e os filisteus...
Guardai-os bem pois vou-me embora e sem mais planos
Minhas verdades são só minhas, planos meus.
(dirão os anos)


19-07-11

Stà fermo

É coisa de ser vivente
Viver até que se morra
Por mais que o tempo não corra
Morrer se espera somente
E vive o ser já dormente
Fingindo ao mundo de envolta
Que bem está, segue em frente
Por dentro a hera lhe abrota
Librando o exíguo que há
'steve ele aqui? pouco importa
estando ou 'stado, não 'stá.

17-07-11

sábado, 9 de julho de 2011

Tratado pós-moderno de antissocialização

No mundo pós-moderno de jovens pós-modernos
É proibido fazer com as próprias mãos,
É proibido ser feliz,
É proibido acreditar em qualquer coisa,
É proibido projetar o futuro,
É proibido saber onde se está,
Quem se é e para onde se vai,
Ou sorrir cortesmente ou espontaneamente.
Nem consegui-lo, aliás, é permitido.
Mas ama-se superficialmente sem amar
Obriga-se o desgostoso a mais gostar
Toma-se remédios verdes e brilhantes
Cápsulas amargas que entalam na garganta
Em caixas verde-e-brancas ou em tubos laranja-translúcidos
Onde se lê em letras pretas bonitas e graúdas:
fluoxetina 20mg
E dorme-se uma tarde inteira como pedra
Dispensa-se todo o tipo de socialização
E sente-se milagrosamente melhor depois de acordar
Feliz! pode-se rir de tudo e todos.
Belo manjar pós-moderno...
A panaceia em suas vinte miligramas!
Sou um homem pós-moderno e feliz!
Mesmo sem fazer por merecer
Os louros pós-modernos da áurea juventude.

09-07-11

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A flor do passado

Eventualmente viremos aqui
E aqui falaremos da flor, do passado,
Do estado das coisas, do vi ou não vi,
Da morte que encerra este assunto escusado.

Será necessário pra sempre voltar
Já que nos dizem: 'Recordar é viver'
Mas mata e maltrata bem mais o lembrar
e este lembrar só nos faz mais morrer.

Não há mais o que dar, só resta partir
E assim apartados podemos viver
Mas não vale chorar, tampouco insistir
Viviamos a vida e deixemos morrer...


jun. 2011.

terça-feira, 5 de julho de 2011

(area non ædificandi )

Quero sempre evitar o agradável
E evito desse modo a decepção.
Dentro do espelho eu, a imagem, vejo o eu real
que não sabe que decepcionar-se faz parte,
que o consolo é saber que outras coisas aí vêm
(bem piores) e esta decepção não é a última.
Que os homens maus dormem bem à noite,
e os indiferentes dormem, se for o caso.
O caso de dormirem (de dormirem por acaso).

Evito sempre pensar em dormir.
Mas não me agrada saber que não durmo
quando penso em fazê-lo.
Evitando o agradável evito igualmente
o mal-estar de não ter o que fazer depois de satisfazer a vontade.
Não me agrada simplesmente.
Então evito.
Mas não faças isso que eu faço, adstante febre!

À custa de tudo isso, pesam-me as costas
À custa de tudo isso, caem as paredes
Mas não faças isso que eu faço, hic et nunc!
Evitar o agradável, mais que mortificar-se,
é mortificar-se duas vezes, digam-no os céus!
Viver, se já o é, não requer mais um reforço...
'Está tudo aí' - dizem - 'É tão claro como água!'
Mas nada é claro como água depois de n'água dar-se com os burros...

Bom que nada seja aqui plantado, tampouco erguido.


05-07-11

sábado, 2 de julho de 2011

Morre-se

Uma coisa interessante e também triste sobre a vida
é que a sua parte mais interessante simplesmente
não se deixa conhecer por parte de quem vive.
E morre-se a tentar encontrá-la, ao menos vislumbrá-la.
Sempre se morre.
Morre-se sempre,
e nada de achá-la.

02-07-11