quinta-feira, 15 de março de 2012

O homem feliz

O homem feliz é pó de caliça.
Não pega-se à massa,
esvoaça em poeira.

O homem feliz quer dar à carniça,
com chama mortiça,
potestade altaneira.

O homem feliz é feito de espasmo.
Molhado de sonhos
é imberbe, sem 'spanto.

O homem feliz é cego, ofuscado.
De paz há um bocado
onde lhe há de haver pranto.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Mundo em Duas Cores

Meu mundo se vê preto-e-branco
E nele não há outras cores.
É baço e monocromático,
sem paixões e sem amores.
Meu mundo é dormente e lasso
sem cais, nem porto, nem espaço
para dar-se os finais estertores,
ou grunhidos, muxoxos, gemidos...
Pro diabo com todas as dores!
Se sofre-se, sofre-se quieto
sem reza ou coroa de flores.
Morre-se sempre sozinho
e engolfa-se então nos trevores.
As noites truncadas e incertas
Sem sono e sem sonhos, senhores!
Os dias são sempre de insossos,
aguados, maçantes vapores.
Mas passo por tudo sem ter
de sentir qualquer uma das dores
Meu mundo é estóico sem ser
sem querer, sem saber, sem valores.
É exiguamente habitado.
Sua paisagem são vários sol-pores
que contemplo sem ver o amarelo
ou o róseo arrebol. Unicores.
Graduação do preto até o branco
sem graça, onde há certa beleza
reconhecida, com pouca firmeza,
de um mundo de só duas cores.

06-02-12

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

(Eu e) As Pedras

Tenho fascínio por pedras,
e ao mesmo tempo as desvio
da ideia, essa que medra,
vinda do pejo do frio

Que é próprio das realidades
pétreas: maciços vazios.
Pedras que não têm idade.
Vidas que vêm sem seus fios.

Tristes, paradas, dormentes,
só lidam co'a solidão.
Pulcras por serem dolentes.
Sólidas mães da acridão.

Pedras: mistério que encerram,
Que captam minha atenção.
Pedras que os ventos enterram
com o pó: matéria de Adão.

O pó, que um dia foi pedra,
foi massa que a santa mão,
fez homem, que a terra redra.
Entre os dois eis relação!

Com elas sei que aprendi
e a elas vão estes versos.
Pedras que sempre entendi,
largadas em mundo adverso.

Presas ao solo gelado
Duras, frientas, singelas,
Sinto-me a todas ligado
Quase que sou uma delas.


31-01-12

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Arquiinimizade de amantes

O amor é inimigo dos amantes,
E os amantes, inimigos um do outro.
Pois os que se amam lutam entre si
Numa dança de egos superprotetores,
Num formigueiro de vermes em estado latente
Dentro do amor que se deteriora.
Zurzido, dia a dia, pelos pingos da chuva da rotina
E açoitado, sem cessão, até a morte.

Trabalhado à exaustão está o amor.
E brota do inescrutável, e tem de ser curtido.
Acalentado pelos amantes arquiinimigos
Não só de si próprios como do próprio amor que cultivam.
A flor da gula, da cegueira e da extinção.
É aquilo que os une, opõe e, por fim, separa.
Amor de amantes, tripla causa de discórdia.
Um criador de inimizades.

26-01-12

domingo, 15 de janeiro de 2012

LXVI


É (desde que dela sei) um prêmio altivo que foi
uma vez posto sobre o pedestal altaneiro,
revolvendo-se eterna frente ao sol a pino

bem à vista do eu, porém longe do mim
a mil léguas compridas do alcance dos dois.
Bem esmerada, porém erguida, para que

caísse, vez ou outra, atingindo várias cabeças,
em dias aleatórios, feitos de mármore duro
e chuvas de gota espessa, quebrantada,

a arrefecer as ideias frouxas, e pondo
em termos mais simples a concepção
do que se quer, e a visão de ser isso mesmo,

desde o início dos enlaces, desde os cantos
mais madrugais, desde as horas primeiras,
desde tudo o que vem na frente de tudo.

Não é de minha autoria ou propriedade,
não é de meu conhecimento ou parecer,
mas desce a mim cada vez que penso

em tudo o que não posso nem quero
fazer antes de ter o azo e a razão para
em marcha o pôr. Peço perdão pelo vício

de a cobiçar, de desejar tê-la por
mais que um punhado de horas,
de banhá-la no mercúrio dos dias quentes,

de afogá-la junto com os cachetes,
de religiosamente implorar para que fique
sempre aqui ao meu lado, integralmente

minha, a saciar os anseios mais imediatos
para toda e qualquer urgência boba,
para evitar o pugilato de entrededos

durante o governo porco e entrecortado
das horas plenas de ócio. Para que não seja
tão fugaz, para que não seja assim como sói

ser por todo o tempo que me cabe a desejá-la.
Para que possa lembrar-se de que há
quem a queira e a mereça, na medida do possível.

Não como o troféu do mal-informado,
nem como o galardão do ignorante
mas como a recompensa do (des)merecedor,

incapacitado de a receber como sua de direito,
vendo-a dançar com os descompromissados
atinando maneiras de a capturar - efetivamente,

como quem viesse com ordem de prisão,
ou como quem mandasse em vontade alheia
ou como quem... mandasse em vontade alheia...

Pois, como o que sabe o que ansia, sem saber
como o lograr, passo ao largo de sua casa
e, de través, lanço olhares vagos para os felizardos

que a tocam amiúde em um bacanal onde
borbulham nomes russos, vodkas anticristãs,
soluços de gente farta a repimpar-se como somente

com ela se o pode fazer. Satisfação transbodante
é o que vejo nestas pessoas todas, que
muito me diminuem e me rebaixam à condição

medíocre de marginal não extratificado,
mero espectador do gozo alheio e inconsequente
de pessoas que têm muito do que não merecem

e, por não merecerem, são dignas de dispor
abundantemente disso (que em abundância têm)
e legam seu niilismo ao homem que vem depois

em trevas surdas, balbucios roucos, bestas-feras,
depois de mim, deles, do mundo em si, vergonhoso e triste,
e dela, que nos move até o céu - onde não entrará - satisfação.

15-01-12

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Uvas in the distance

Eu sou a raposa da fábula
Minhas uvas são distantes
Microbianamente minhas,
E coisas distantes são turvas, ambáricas...
Me negam o direito de tê-las ou de negá-las
Almejá-las faz-me, por birra, não vê-las
Não sê-las, não comê-las,
Perdê-las, desentendê-las,
Amiúde desmerecê-las,
Sem nunca antes amá-las.
Pois sou a raposa da fábula,
E as minhas uvas são grises
Bem antes de serem verdes
Uvas de ectoplasma natimorto
Uvas hiper-imaginárias
Uvas supra-sensíveis
Uvas verdes comentícias
Impossíveis, alucinógenas,
Nunca, jamais concebidas
São d'água-e-sal, são placebo, homeopáticas
Uvas, antes de tudo, impróprias
Pois não as merece a raposa.
Ademais, estão verdes...

10-01-12

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A hierarquia dos Anjos

Lugar estreito onde somente eu estou. Leio um dístico de letra preta e serifada que enteso diante e à altura de meus olhos: "no más logro comprender la jerarquía de los ángeles", diz. São de Velásquez de Argamansilla, se não me engano, e ainda não enganando-me, disse a ela alguma vez que gostava muito desse poeta, o que não era de todo verdade. No verso, com a letra de seu próprio punho, ela havia acrescentado: "...porque estamos, en nuestro amor, más allá de los propios serafines, estamos más adentro en el propio Dios."  Ainda guardo este fragmento de poema e nem sei por quê. Faço uma curta caminhada pela betesga mais imunda mas não trago de lá nada comigo a não ser tudo o que levei. Está sempre do mesmo jeito, tanto embaixo, quanto em cima. A parte de cima, esta é absolutamente imutável desde o imprecisável início. Fui jogar fora este papel, - recorte dalgum livro de poesia no verso do qual ela me adicionou aquelas palavras - e em casa me descubro com ele dentro do bolso da camisa. Então, já de volta, pinto os olhos dela com um bastão de cores múltiplas e fugazes que comprei da última vez que estive fora daqui e junto de alguém que era ela, e lembro que ela era como não é hoje. Por serem quase imaginários, seus distantes olhos somem à medida que tento esboçá-los com estas cores baças. Desisto, pois, de tentar bosquejar o que não detenho mais na mente. Os anjos, aliás, são inúteis para mim que não creio neles. E seu poema sobre hierarquia angelical, não significava mais nada quando fui atirá-lo fora. Devo ter hesitado no momento do coup-de-grâce. Fiquei com ele de lembrança.

Fico recostado num recanto de meia-luz contando minutos úteis enquanto espero a grande retaliação dos altos exércitos. Deram de lá uma ordem que a mim chegou pela boca de muitos e que não tive a coragem ou a vontade de acatar. Foda-se. Faço as minhas vezes de soldado ornamental estando completamente só, recolhido em bom lugar mais que recôndito. Querem muitos que seja um bunker mas não entendo de guerra, faço-a instintivamente sem saber se a venço. Não é fortaleza de qualquer espécie, não é demasiado poligonal, é concreto armado, e armado sendo, me aconchava e me retira da vista do mundo, no entanto, não é impassível de penetração de elementos externos. Tem coisas essenciais aí dentro, coisas primordialmente essenciais. Até eu estou aí. Convenci-me disso há pouco tempo. Ela não está. Não está mais.

Ela, desde então e, muitas vezes, fervorosamente, reza para que o céu se exploda e, violentamente, arraste tudo consigo num vórtex de ventos multidirecionais. Ela não aguenta. Com os anjos à volta, já me escreveu muitíssimas palavras sem, no entanto, ter a coragem de me as mostrar. Ela não sabe ao certo se ainda tem o que quer, ou se o conseguirá denovo se não mais o tem, mas tenta de uma forma ou de outra consegui-lo, não fazendo nada para isso. Desde a última vez que se sentiu como o serafim próximo da plenitude, sonha avidamente reconquistar um momento de igual euforia. Eu maquino uma maneira de chegar onde deixei minhas pernas. Não conto com nada que possa vir. Chamar a atenção não funciona por agora, e ela se desespera todos os dias e não deixa ela mesma saber. Ela tem medo das hordas que estão a caminho daqui com promessas de um grande expurgo. É realmente muito intimidador e põe medo nas gentes que se amontoam nos pontos de irradiação. Será uma das coisas mais maravilhosas e ao mesmo tempo mais amedrontadoras que se passarão nestes próximos anos. Eu vejo nos noticiários que pode ser o acontecimento do século, e, secularmente, isso me sai pela outra orelha seguido de alguns apodos que me vêm na ponta da língua.

Ela quer, às vezes, que mais alguém compartilhe de bons momentos com ela. Mas sabes como essas coisas estão hoje em dia, não é? Os soldados hodiernos são assaz desconfiados e preferem uma vida reclusa nos seus permanentes abrigos de hibernação onde fazem sua vigília automática e declamam suas odes para a polilha suspensa. Ironicamente, são os que mais chamam atenção e mais despertam afeições mal dirigidas. Ela, naturalmente, não está afeita a esta solidão pela qual passa, mas faz troça desse estado enquanto espera que se altere. E conta os grãos de poeira, bate a cabeça nos trevesseiros, corre as mãos ligeiras pelas costas do gato lançando olhares vazios para o teto, canta refrões soltos de músicas irritantes que ela sabe que nunca lhe sairão da cabeça, escreve versos anônimos  atrás da capa do caderno, assiste filmes tristes, ri de qualquer coisa engraçada que alguém deixa escapar na conveniência dos momentos oportunos, dedica seu tempo a ícones distantes e se prepara para o acontecimento maior que pode haver, ainda não marcado nem especificado, mas certo para um dia solto e qualquer do calendário; algo que ela quer e precisa, algo que só está em alguém mais, e não nela própria, bem longe dos anjos assexuados e das luzes indecifráveis das alturas. Ela precisa, para sentir-se próxima dos céus como os anjos de seu poema, de algo sujo, terreno, recheado de apostasia e desaforo para com as ordens que vêm dos altos exércitos. E todos os dias oscila entre demônios e anjos, e sofre calada, e manda aos diabos a sua hieraquia de tédios tristimaníacos.

Ela precisa de algo que lhe anime; ela precisa de motivos para ser verdadeiramente aquela que se apresenta diante dos outros. Ela sente afinidade enorme pela potestade e elevação dos serafins colados a Deus, ao mesmo tempo que se sente atraída pelo meu desleixo de soldado infiel, militante procrastinador e detrator dos grados angelicais. Ela tem anseios não revelados, ela tem vontades impossíveis, desejos refreados por um QUEM ou um O QUÊ que niguém conhece, nem ela própria. Ela diz que precisa de alguma coisa a qual tudo e todos lhe negam; ela diz se arrepender de ter dito ou não ter dito aquilo; ela diz que quer saber o porquê mas sabe que não suporta quando alguém lho diz; ela diz que quer algo, sem saber o que exatamente quer; ela diz que não mais aguenta esta solidão lá dentro; ela pensa mil coisas quando lhe dizem qualquer coisa sem pensar; ela pensa que tudo a ela se refere; ela urge por alguém que seja o certo, mesmo enxergando-o e tendo-o como errado; ela diz que não quer mais ser assim; ela diz, mas no fundo não o sustenta; ela diz mil coisas mas não se decide. Ela disse que queria conversar. Eu disse 'Não'.


14-12-11

sábado, 10 de dezembro de 2011

La piqûre

Un rêve me morsure
et lentement s'enroule
comme un long serpent
c'est le mal qui s'entraîne
un moustique et sa piqûre
ennuyeux il me traîne
comme une vite voiture
et court rapidement
sur la longueur de la torture.

Mes pièces s'éparpillent
mon corps entier bouge
je suis sang, je suis rouge
et je rêve un bon rêve
d'être un jour le matin 
d'être le cloche qui sonne
qui fait réveiller le demain
le bruit d'un téléphone
mais je n'aime personne
Il n'y a rien dans mes mains.

10-12-11

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Soneto a uma morte patética

A mansa fera dorme enquanto espera
A surda e lene morte a lhe levar.
Alcança este homem livre a vil quimera
Que o dera a dor mais langue ao lhe matar.

Morreu liso e estafado, em vão já era
Rapaz de sonho pouco a se entalar.
Na sua ideia torta nada altera,
E agora morta e torta há de ficar.

Dormiu demais com a porta semi-aberta
Em sono assim de pedra e já de lado,
Adentra a morte fria e então lhe aperta

Abarca-lhe a goela e tem selado
Destino de ser morto e sem alerta,
Jazer de boca aberta e engasgado.

16-09-11

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O céu de Barra-Lúcifer

Olha!
Vê os homens e o mundo que constroem
que aterrorizam, capitalizam, barbarizam, escravizam
e, tão estoicos, se destroem...

Olha!
Vê as estrelas alheias a quedar-se
que brilham, olham, abrolham, folham
o céu pardo a então calar-se...

Olha!
Vê os astros do universo a se adejar
que se explodem, erodem, eclodem, implodem
em seu longínquo bodejar...

Olha!
Vê as galáxias, os milhões, que já se apinham
que se abandam, tresandam, viandam, ciradam
Cruel silêncio que escrevinham...

Olha!
Vê o frio céu que alturas pinta
que desce, cresce, escurece, anoitece
Mutantes cores, mesma tinta...

Olha!
Vê o universo imenso onde todas coisas somem
e se dissolvem, persolvem, exsolvem, se revolvem
no meio delas vai o homem...

joão niemandt
29-11-11

sábado, 26 de novembro de 2011

Capítulo XI - Onde se conta o que os Assírios estariam desejosos de saber e não o puderam.

Belas manhãs no ermo do Crescente, o rei assírio degolou a muitos homens, misturou seu sangue em argamassa, moeu seus ossos, cortou seus dedos, cerceou suas cabeças, arrancou seus olhos, juntou-os com pedras e betume e os emparedou como tijolos e ladrilhos, revestindo com suas peles enormes e humanas muralhas. Muralhas feitas de homens, ligados espaço a espaço, vazio a vazio, por usuais substâncias de alvenaria nos entremeios. Macabros muros assentados na dor do esquartejamento de homens beligerantes, nada mais intimidador para os inimigos e potenciais invasores. O rei, que já era muito cheio de si, orgulhava-se de ser tão perverso e, se pudesse, provavelmente dormiria diante do ostentoso símbolo seu e de seu povo, assim como de sua estultícia, tão bem construído e autoexplicativo quando se conjecturava o que havia lhe conferido a tão aparente solidez. Mas uma bela manhã, e sem muita cerimônia, chegaram, com ou sem rodas, berrando muito alto, os caldeus - sim os caldeus - e transformaram a muralha em pó, e junto com ela também os assírios e seu rei de pernas bambas, pisoteando, linchando, empalando, e arrevessando sua carcaça estripada como a de uma caça qualquer que se atrapa num fojo. Suas mulheres foram estupradas, violentadas até a morte, seus soldados foram mortos ou escravizados, suas crianças sobreviventes foram vendidas aos nômades mercadores. Os corpos dos que pereceram foram amontoados em montões que chegavam às nuvens e nem os vermes nem o pó da terra deram conta de comê-los. Pôs-se um termo àquele povo tão temido, cruel e, aparentemente, invencível. E para que saibam os podres assírios, tudo isso é culpa de Arpachade.

21-09-11

Quartzomegama!

Tenho um coração retrátil,
maltalhado e mal-ajambrado
em arcano método serôdio
que igonoro completamente.

É um calhau solto cá dentro
a balouçar c'os solavancos.
A não servir-me nas altercações
A ser uma coisa qualquer
que a mim não agrada nem desagrada,
mas que se enrijece mais e mais
imune às pancadas que lhe dão.

Me maldizem por conta dele...
Porém ele a ele pertence
E eu, a mim me entrego
E não a ele.
Não sei a quem pertenço
Não me deixo dominar
Por uma pedra.

Nesta pedra britada
impera a falta de continuidade
do interesse em ser humano
do interesse pelo ser humano
E instala-se o entrave
Aos modos fáceis de afeto
Aos afetos e aos cômodos modos
De ter modos para com cômodos
meu quarto...

28-08-11

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Sol de Outubro

Neste banho d'alvo sol finco raízes
Tal me açoita e me estaleja em estilhaço
Atrapado não me movo e os infelizes
Pisoteiam-me ao fugirem do mormaço.

Estou preso, bem se vê, não há saída.
Sou um filho deste sol mais que agastado
O qual é pai das cores todas e trucida
Suas crias que se queimam no costado.

Noutras partes dar-me-ão do que viver?
Pois penúria é o que me abraça a cada passo
São três luzes todo dia a me ferver,

Crepitando minha pele, aberto espaço
Infindável. Sol que é feito para arder,
Calcinar-me sem piedade o espinhaço.

11-10-11

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Meus anelos

Eu nunca satisfiz os meus anelos
Quando quis ter a todos satisfeito.
Recubro a vida afora com despeito
E frustrado, ao meu nada então apelo.

No entanto, nele posto é pois mais belo
O sofrer de uma astrosa criatura,
Que em píncaro de horrenda desventura,
Não recorre ao vil mundo paralelo.

Feliz é estado incerto e improvável
A mim que vivo e evito estar absorto,
A mim só basta ser e estar estável

Sem ter no impossível meu conforto.
Não vivo a me fiar no insustentável,
Pois logo tombarei com isto: eu morto.

joão niemandt
16-09-11

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Bismela setembrina ou Promessa de Alá

A menor recompensa para ti, homem justo, e também para ti, ó mártir, é um sólido, cristalino e indeflagrável átrio com oitenta mil servos de prontidão e formosíssimas setenta e duas esposas virgens, sobre o qual, como coroa majestosa, repousará, magnificamente bem posto e assentado, um mais que esmerado domo decorado e escalavrado de pérolas, aquamarinas e encarnados rubis de brilho absurdamente coruscante. Será este átrio tão exageradamente largo que comparar-se-á sua largura com a distância entre Al-Jabiyyah e Sana'a, e ainda parecerá vencer esta desassisada distância. Os frontões gregos, com suas colunas de capitéis magros, seus minguados florões pouquíssimo originais e seus arcos tortos e imperfeitos nada serão ante o apuro, o denodo e o excesso de requinte da dimensão estrutural e arquitetônica deste palácio que há de te acovilhar para toda a eternidade junto com os teus servos e tuas concubinas.

E refestalado em infinito e indescritível prazer, deitarão a ti sobre leitos sumptuosos e celestiais, incrustados com preciosíssimas pedras raras, onde servirão somente a ti setenta e duas belíssimas jovens de frescores imortais, de vitalidade, juventude e vestal beleza eterna, com suas taças cristalinas abarrotadas de vinho vermelho como o sangue da vida, o qual nunca te provocará uma intoxicação nem mesmo uma mísera dor de cabeça. Beberás desse vinho eternamente e nunca mais dele hás de te fartar e, cada vez que dele para dentro de ti verteres, seu doce e arielesco transladar, de forma unicamente agradável, te embriagará, mas sem que tu te destruas ou percas a razão por completo. Estarás, a um só tempo, embriagado e sóbrio numa espécie de equilíbrio entre estes dois extremos, de modo que somente o prazer se possa sentir por baixo de todo este inefável torpor.

A ti as húris, eternas virgens, trarão as frutas de tua predileção e a carne mais nobre, das mais nobres aves, que desfazer-se-á em tua boca com tão magnificente sabor que nenhum néctar ou manjar de deuses gregos alguma vez teve ou terá enquanto houver o tempo a correr. Somente tuas serão as húris, com seus olhos negros, virginais e castas como pérolas bem guardadas, seus seios maduros, seus corpos transbordantes de mel, vinho, e óleos aromáticos. Divinas, belas, sedutoras, especiosas, lascivas, todas elas tuas em recompensa por tudo quanto hás feito em vida, tudo em recompensa pelo bom homem que foste; serão teu troféu, tua fonte de infindável prazer, um moto-perpétuo de orgasmos, um bacanal em ciclo contínuo e infinito num paraíso de virgens, manjares e orgasmos também infinitos. Sê bem-vindo ao meu paraíso!

João Costa
12-09-11

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O lagarto do Parque Güell

Sonhei uma vez estar no Parque Güell admirando suas colunas, seus azulejos, suas torres, maravilhado com toda aquela belíssima aura de modernismo desmedido de Gaudí, e, descendo um vão de escada de corrimão sem balaústres, me vi, inexplicavemente, numa estada descendo o Araripe onde alguns carros, todos eles Ford T, subiam o declive em marcha ré com os motores desligados ou com câmbio em ponto morto. Não lhes dei atenção, minha mente desembocava todo o fluxo das ideias no lagarto do Güell, o lindo e imponente lagarto do Güell. Procurei debalde esse lagarto - sempre tão recorrente nas imagens do parque - por todos os lados, como pude, e somente depois de alguns minutos dei-me conta de que não estava mais em Barcelona, e sim no meio do Araripe, que não obstante ser um recôndito de mata atântica, me figurava no sonho como o mais desidratado e escaldante sertão, um puro andurrial. Olhando para o ocidente vi uns trilhos fazendo a curva na descida da serra e resolvi segui-los, uma vez que havia me desvencilhado do caminho que traçava, e vi que não poderia mais tornar ao lugar onde estava anteriormente. Neste dia ensolarado ventava muito naquele descampado ressequido e, como é de praxe nos sonhos, esqueci completamente do que estava a procurar e apenas segui os trilhos. Pouco tempo descendo a escosta, vi uma grande pedra onde estava escrito algo como "JO SÓC UN DRAC, NO UN LANGARDAIX" e, sobre ela vi, com grande surpresa, que deitava, imponente, o lagarto do Güell. Fitei-o bem de perto tentando gravá-lo na memória em seus ínfimos detalhes, pois senti que não permaneceria ali, no meio do ábdito sertão, por muito tempo.

Não podia imaginar como ele havia se teletransportado àquelas paragens desde Barcelona, nem mesmo como eu havia feito a mesmíssima coisa apenas descendo uma escada. Me concentrei nele finalmente. Os Ts haviam parado de passar ao longe na estrada, não vi  mais os trilhos que segui até chegar à pedra que deles se avizinhava e onde pousava o lagarto. Estava agora no meio do mundo, onde o Sol não dava sinais de tramontar nunca, sozinho com a famigerada criatura. Não me lembrei em nenhum momento de Gaudí, e nem o considerei como criador daquele ser extraordinário. Certamente ele sempre existira e, quanto mais eu o mirava, mais certo me tinha desta constatação.

Muita água jorrava de sua boca e evaporava antes de tocar o solo. Eu não consegui atinar de onde vinha aquela água, ainda mais estando onde estávamos. Dos poucos lagartos que havia visto, ele era o maior e o mais belo de todos, sobranceiro àquela pedra lavrada e fervilhante, tão imponente e calcário; era calcário sobre calcário, mas não sendo ao mesmo tempo a mesma coisa. O lagarto era indivíduo, senhor de si, não era pura pedra ou pedra bruta, era ser de pedra sem ser pedra. Brilhava ao sol forte e parecia cada vez mais brilhante à medida que o esquadrinhava mais de perto. Não, Gaudí nada tinha a ver com a criação daquele vultoso animal; Gaudí, mais provavelmente, havia sido criado por sua suposta criação. 

Parecia que estava a ver o próprio Deus, o Deus lagarto. Não consegui, por mais que tentasse, tirar meus olhos dele, quanto mais afastar-me de sua etérea presença. Vi que enquanto estivesse ali, não haveria noite, o Sol estava lá com o fim único de iluminá-lo. Ele se alimenteva de Sol, de luz e, agora, de minha embasbacada admiração pela sua acrônica e reptílica beleza. Decerto logo me mataria e me devoraria, como fez com o próprio Gaudí, que tentou apoderar-se dele, sem êxito.

Confesso que achei-o muitíssimo mais majestoso ali, encimando a rocha, do que na própria fonte em Barcelona, no centro das escadas, onde era senhor do parque. O sertão lhe caía muito melhor como cenário, mais belo que qualquer retábulo barroco. Me parecia que sempre estivera ali a contemplar o infinito céu, completamente imóvel e indiferente a qualquer fenômeno, mergulhado em seu transe eternal, onde se elevava no meio da caatinga. Um ponto que marcava a beleza do seco e inóspito sertão e o transformava em distorção tempo-espaço, uma cúpula invisível que delimitava um deífico sítio de terra brônzea e escaldante. Parece que nunca estivera em outra parte que não fosse o lombo abaulado daquela pedra.

Senti mil ganas de tocá-lo e sentir seu frio e rutilante corpo. De olhos fixos a mirar sua face, eu balbuciava, de forma irritante e em voz baixa e rouca, ininterruptamente, a frase "és o deus lagarto". Não pensava em mais nada a não ser em tocar sua face ou sua cabeça. Não conseguia me alhear dessa vontade tremenda, absolutamente nada mais me passava pela mente senão isso de tocá-lo. Estava completamente dominado por tal desejo e não pude fazer nada além de chegar-me gradativamente para perto dele. Ele, por sua vez, não se movia de forma alguma, e brilhava cada vez mais, mais que o prório Sol, mais que qualquer outra luz que apareça em sonhos sem deixar cego quem a vê. O sertão inteiro havia sumido completamente àquelas alturas. À nossa volta, nada a não ser o branco de sua luz que recobriu todo o universo que o olho pode ter ao alcance. Estava eu cada vez mais perto dele e cada vez mais me sentia numa eviterna paz ao estar próximo de tê-lo de encontro a meus dedos. Cada vez que me aproximava dele, de sua cabeça, com a mão estendida e espalmada para senti-lo e tateá-lo, mais rápido repetia as já ditas palavras, até que, quando finalmente consegui ficar à distância de um palmo de seu corpo, e ainda repetindo as palavras sem cessar, arrostando-me ele, sem mover a boca nem outra parte do corpo, disse em estentórea voz: "Não sou Lagarto, sou Dragão!" e desfez-se em luz antes que eu pudesse realizar minha única e mais avassaladora vontade.

08-09-11

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Useless handkerchief

Um olho raso d'água não é dor,
é lágrima, bênção travestida.
Dor é o que está dentro e não se vê
Sente-se a pulsar, mas não sabe-se o porquê
Lágrima é o troféu de quem consegue
mostrar que sabe sim sofrer.
Quem tenta chorar e não consegue
bem mais triste pode ser.
Quer aliviar o que está preso,
Como se chora, o que fazer?
Procura em vão qualquer motivo
Sente de fazê-lo a obrigação
E tenta chorar, mas sem poder.

06-09-11

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Fragmento

E tinha o coração divido entre mais de uma coisa, entre mais de um objeto, entre mais de uma pessoa, sem nunca devotar o inteiro de seu ser a apenas uma delas. Não tinha de fato um objeto de amor, o que é a mais legítima fonte do enfado e do desespero, da crise que agarra nas tardes solitárias, daquela podre inquietação que vai e volta, da indecisão que as palavras não ditas plantam n'alma. Porque, muitas vezes, as palavras ditas não importam, elas só saem a esconder o que não foi dito. Às vezes importa muito mais traduzir o que se perde, traduzir o que não foi dito ao invés do que o foi; essa é a única parte que interessa quando lemos as pessoas. E ler as pessoas é uma arte arcana, é mistério puro, como tudo o que envolve isso de penetrar as palavras.

02-09-2011

sábado, 27 de agosto de 2011

Ábaco a Baco

Teu toque me arrepia em partes nada castas
Olvido-me do tempo em êxtase a passar
Corre bem mais longe! uma mão aqui não basta.
Dá-me este prazer ímpio e pífio de tocar!

E vista-se meu corpo envolto neste teu
Caia e morra Roma! este aqui é meu futuro!
Vai de mim a ti, a correr, o fluido impuro.
E o resto leve o Diabo! dele é a alma, o corpo é meu!

Perdem-se-me as contas, não perde-se o desejo
Cada vão instante redunda em bom ensejo
De dentro de ti ver-me e teu ser conspurcar.

Ínclito prazer que os gametas a nós dão!
Bebo-te  toda, o mais que posso, e eis que não
Fana-se este afã de a ti inteira devorar.

27-08-11

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Um tardio refluxo

Se tu suportas o que sobrevem a ti,
esperando que faça-se a justiça a seu tempo,
perdes algo irrecuperável.

Recresce sobre ti aquilo que a todos sucede,
Nada de mais, e o mundo o sabe, e sabe
que tu sabes a nada para o mundo.

Mas não tomes o despropósito por desaforo
Nada é intencionalmente desaforado
Tudo é vagamente desproprositado.

Do despertar ao adormecer, com ou sem estrela,
só há vontade em quem a toma
e faz-lhe sua, e a domina, e a satisfaz.

Se tu absorves tudo como esponja
sem reverter o fluxo num refluxo
chegará a hora de transbordares

mas tarde demais.


24-08-11

domingo, 14 de agosto de 2011

Poema do pórtico

Quem ama muito se equivoca ao pensar
demasiado em quem ama, ou pensa amar
Mas amor não é palpável, coisa densa,
E o de uns não é coisa assim extensa
Certo é que é ninguém capaz de amar,
Amar a alguém o tanto quanto pensa
Por ver-se o quão penoso é pois amar.
E perde-se esse amor que a alguém dispensa.

14-08-11

Modus operandi

Nunca me importa o não saber de nada,
Desde que eu seja quem me calhar ser.
Não é mister saber e não me enfada
Que haja aí mundos mil por percorrer.

O tempo é tudo, e tudo me faz nada.
Sendo assim, não há nada que perder
Recebo o que me vem, absorvo cada
Partícula do mundo sem 'scolher.

Não me ocupo em pensar no que virá
A relva do amanhã Deus nos dará
E vivo este comenos de harmonia.

Nasci, sem mais fervor, em berço pleno
Estou, onde estiver, mais que sereno
Viver é minha grã filosofia!

14-08-11


quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Carta do Inferno

Não, senhores, não é possível viver assim. Aqui apenas se vive e, viver é condição sine qua non. Mas não se vive como é possível viver, na medida do possível. Falta algo mais, um quê de vida para esta vida e aos que nela vivem, ou parcamente tentam nela viver, já que não morrem nunca. Nem chamemos isto de vida, não se vive por aqui. Aqui somente se morre; morre-se sem nunca completar-se o fim da vida. Morre-se sem morrer. Este lugar nos é merecido segundo quem nele nos colocou. E a ele não somos nem um pouco agradecidos. Melhor seria não nos ter feito. Aqui tudo é isto que está à volta: nada e tudo existindo concomitantemente, entrelaçados numa dança em espiral.

Naturalmente não há dons, não há bênçãos, não há risos, não há chistes, não há alegria nem há alívio. Não há graça, nem há viço, apesar de tudo isso haver e estar, aqui e agora. Podemos vê-los em toda parte. Não estão em nós mas estão em algum lugar e a nós chegam pelos meios sensoriais sem que nós, inexplicavelmente, os sintamos dentro de nossos corpos e nos regozijemos com isso. Tudo está aqui e, ao mesmo tempo, não está. Há tudo isto e, ao mesmo tempo, não há nada disto. É uma fachada escancarada e adrede posta bem à vista, ante nossos olhos, mas é apenas visível, não se sente mas vê-se como se estivesse lá.

Só há a sensação de tempo perdido, de tempo gasto, de tempo que voa e escorre por entre os dedos sem que seja possível fazer nada enquanto este passa. Este mesmo tempo passa muito rápido para que possamos fazê-lo valer a pena, assim como passa muito devagar para se esperar que ele passe todo de uma só vez. Ledo engano nosso pensar que podemos aproveitar o tempo que aqui temos, mas a teimosia nos foi injetada para que tentássemos, mesmo sabendo que sempre fracassaríamos. Nos é dada toda a liberdade de ir a qualquer parte, porém toda parte é sempre a mesma parte, e as dores que sentimos em nossos corpos não nos permitem que nos movamos livremente sem nelas pensarmos. Este tempo é de uma cruel natureza que não se pode muito bem explicar.

Esta natureza cruel e nefanda, ora breve, ora prolixa, nos impede de fazer qualquer coisa e ao mesmo tempo nos faz sofrer cada segundo por estarmos parados dentro dela. Estamos completamente à mercê deste espectro controlador de nossas pobres e, infelizmente, eternas almas. Este tempo de aqui é quase uma personificação de um malfazejo demônio, que sabe de antemão quando vamos nos mexer, e age em malgrado nosso quando vamos fazê-lo, multiplicando a nossa, já multiplicada a incontáveis múltiplos, agonia, e, não nos deixando então fazer nada. Tudo aqui é pleno. Tudo aqui é sofrimento.

Cada segundo é um segundo a menos; um segundo a menos dentro de uma eternidade repleta de dezenas, de centenas, de milhares, de milhões, de bilhões, de quadrilhões, de decalhões, de zilhões deles, que muito penosamente e morosamente passam, um a um, na modorra eterna da contagem também eterna do tempo, também eterno. Eternamente a passar.

Neste inóspito lugar, não há a certeza da morte para nos garantir um fim de nossas mazelas, não há o descanso eterno por ela enganosamente representado, ou a ideia reconfortante da segunda chance. A remota possibilidade de ver-se longe e livre deste inferno não é nem mesmo remota, nem a palavra "impossível" representa tanta dificuldade quanto a necessária para dar sentido e/ou significação à altura de tão exígua chance de se pôr de corpo e alma para além destas infinitas e malogradas fronteiras. Uma vez aqui dentro, não se pode mais sair, e ponto final!

Este é um lugar de sempiternas penitências, de sempiternas mortes-vivas, de sempiternas dores, de sempiterna sofreguidão, de sempiternas maledicências, gritos, berros, e torturas de todas as sortes, as quais não se pode imaginar em seus reais termos; um lugar de sempiternas repetições das mesmas duras, perversas, malévolas, insípidas e inescrupulosas penas, aplicadas de forma ininterrupta por um algoz invisível, e que se estendem pelo tempo que for necessário para que a eternidade passe inteira, sem que nem um mísero segundo ou milésimo desta fique por passar.

Estas penas, senhores, não consistem-se de trabalhos físicos, ou açoites fustigando nossos lombos, nem máquinas apuradas e lidimamente preparadas para tortura onde nos retesam os membros até que estalem e sejam separados violentamente de nossos troncos estando nós ainda vivos. Não, não há nada disso! O que há é apenas nossos corpos inertes, lançados ao solo ardente, incadescente, pedregoso e irregular a sentir todas estas eternas sensações, como se a nós estivessem a arrancar a pele, a furar-nos os olhos, a decepar-nos os membros, a queimar-nos os dedos, a quebrar-nos os dentes, a nos crivar com mil agulhas toda a extensão de nossos corpos. São todas elas mescladas e intensas, perfazendo uma forma híbrida de sofrimento que não se pode aqui exprimir com débeis palavras de linguagem humana e deficiente. Todas estas analogias não logram êxito em representar de forma fiel o que se sente na pele aqui nestas profundezas.  

E o pior é que todas essas sensações físicas são e estão em nossos corpos para toda a eternidade. Estamos irremediavelmente condenados a jazer neste chão fervilhante e formigante, bombardeados pelas mais dolorosas sensações e sabendo que estas nunca terão um fim. A morte é simplesmente tudo aquilo que nós desejamos; a efetiva extinção de nossos corpos, almas e consciências para que não mais saibamos e sintamos este crudelíssimo castigo, que não sabemos quem criou, embora desconfiemos a possível autoria. Este é o pior dos lugares, o nosso é o pior dos pesares, o mais pesaroso e desesperado. Todas as corriqueiras representações deste horrendo lugar que se encontram nos mais diversos tipos de relatos escritos, sejam eles sagrados ou não, nem que fossem somadas todas e multiplicadas ainda pelo mesmo número de todas elas, não seriam fiéis o suficiente para transmitir uma ideia legítima, autêntica e exata do que nós, por toda a inútil eternidade, em nossas peles sentiremos sem termos um segundo sequer de descanso. Pois isto é o inferno: um lugar de sofrimentos eternos!

E nós somos tudo isto! Não se distingue mais coisa alguma em meio a este imenso tártaro calcinante onde nada e tudo, irritante e desesperadamente, dançam no seu eviterno frenesi, seu maledicente e mendicante movimento de espiral, arrastando a todos nós junto com eles, nos tranformando nesta perene massa disforme que rodopia no epicentro da única e legítima dor que pode haver. Não entendo como pode haver um lugar destes, como é possível ter-se criado com esta réproba finalidade de tortura eterna. Não entendo por que viverei sempre aqui. Só entendo que espirais não têm fim.

11-08-11

sábado, 6 de agosto de 2011

Tríade das incertezas

Há quem acredite nas certezas.
Para mim nada é tão certo
Quanto certezas não haver.
Exceto aquela,
a que dá cabo de nós todos.
Todo o resto é incerto.
Todo o resto é no máximo provável,
e, provavelmente, não se prova
Pode ser que provado já esteja
Por não haver lá prova em contrário.

Melhor não ter certeza,
ao final, poder ser que nada exista.
Este mundo é talvez um sonho
Ou certamente um pesadelo
Ou um misto dos dois
A mestiçagem é a tendência
E o pobre assassino furioso
Não sabe o que é não estar certo...
E por isso mata
E põe na cabeça a certeza de não mais ver o inimigo à sua frente.

Mas é importante crer no que não existe
Para que venha mesmo a existir
É importante crer no amanhã
Mesmo que este ainda não exista
Justamente para que ele possa vir a ser
E, sendo já presente, seja
Outro presente, o imaginado, ou outro qualquer que nos calhe,
Que nos devore e nos iluda
Sem termos de olhar para trás e ver
Que o passado foi bem pior
E mesmo assim não somos felizes hoje
Pensando no passado e passando o presente,
Projetando um futuro improvável,
E vivendo na incerteza do agora.

06-08-11

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

De como matar-se os trilhos

Estes pobres trilhos 'ruinados
Oxidam, metal dilatante.
Com cravo e dormente arrancados
Fundidos em terra distante.
Deitados ao léu, já sucata,
Que em quinze correram bastante
Com brutas máquinas frias
De chiados ardentes, arfantes,
Que ao Souza desciam à cata
De gente, de bicho e de azia
Nas vilas, à mil, zaragata!
Comboios enormes se via.
Nos trilhos, vapor fervilhante
Há noventa anos surgia
Caminho de ferro pujante,
Que morto aos oitenta seria.

04-08-11